quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Anatomia

"Ao curvar-te com a lâmina rija de teu bisturi sobre o cadáver desconhecido,
lembra-te de que este corpo nasceu do amor de duas almas, 
cresceu embalado pela fé e esperança daquele que, em seu seio, o agasalhou. 
Sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens. 
Por certo amou e foi amado, esperou e acalentou um amanhã feliz e sentiu saudades dos outros que partiram.
Agora jaz na fria lousa, sem que por ele, tivesse derramado uma lágrima sequer, sem que tivesse uma só prece. 
Seu nome só Deus o sabe. 
Mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza  de servir  à humanidade, que por ele, passou indiferente"
Oração ao Cadáver Desconhecido
(Rokitansky, 1876)


Quando eu estava no 3º ano de medicina na FAMEMA, li um livro chamado "O Século dos Cirurgiões" de Jorgen Thorewald. A descrição das primeiras cirurgias feitas sem anestesia, e depois a descoberta casual dos primeiros anestésicos, me fez pensar por algum tempo que faria anestesiologia, sobretudo pela passagem traumática na disciplina de Anatomia.


O Laboratório de Anatomia ficava no subsolo do Hospital da Clínicas, mas a entrada para os alunos era pela rua Dr. Reinaldo Machado, recuada apenas uns 20 m da calçada. Naquela época o hospital não era cercado, e era comum a presença de curiosos na janela do laboratório nos observando... Numa das vezes em que Feijão e eu fomos estudar a noite, um desses curiosos identificou um dos cadáveres próximo à janela. Naquela noite foi difícil pregar o olho, mas foi assim que conhecemos o "Sr. João"!


Lembro-me daqueles corpos, distribuídos em 8 bancadas de aço inoxidável, cobertos com lençóis embebidos em formol, prontos para serem dissecados. Mas o impacto daquela cena e do cheiro ágrio do ácido fórmico, não só feriram meus olhos e narinas, como agrediram a minha religiosidade...


Depois de uma breve explicação de como deveríamos proceder, deu-se início a carnificina! Oras... imaginem um bando de adolescentes - em que as mães há bem pouco tempo partiam os bifes nos pratos -  com um bisturi nas mãos para dissecarem estruturas delicadíssimas, no entando, já endurecidas pela rigidez cadavérica!


Por mais que eu tentasse, eu nunca consegui deixar o "Sr. João" como as figuras do Sobbota ou como as que o Gardner descrevia...


Mas as coisas tornaram-se verdadeiramente difíceis, durante as realizações das provas práticas. Era quando nos faziam entrar pela porta lateral do hospital, subir as escadas até o térreo, para depois descermos as escadas que levavam até o porão. Lá ficávamos confinados num cubículo de 25 metros quadrados. A esquerda ficava a sala em que o Dr. Fred fazia as suas necrópsias, a direita a salinha da secretaria, e logo à frente, abria-se a porta para o famigerado laboratório...


Os professores preparavam as provas colocando bandeirinhas nas estruturas, grosseiramente destroçadas por nós mesmos, para serem identificadas. Um alarme avisava quando tínhamos que mudar de bancada. Mas aqueles cinquenta segundos, para mim sempre pareciam menos de dez, e admito que nunca consegui completar uma bancada!


Assim, o nervosismo e a minha imaturidade contribuíram para que eu fizesse novamente esta disciplina. E assim mesmo, não menos difícil que a primeira vez.


A última vez que entrei naquele laboratório, já estava na residência, quando fui estudar a anatomia da região inguinal, antes de fazer a minha primeira herniorrafia. Fiquei triste ao ver as estruturas do "Sr. João" tão destruídas.


Ao olhar para uma das paredes vi a Oração ao Cadáver Desconhecido. Só então percebi que nunca tinha lido aquelas palavras, ou se tinha, não fora com a maturidade daquele momento.


Sentei-me ao lado do "Sr. João" e rezei com toda a minha fé. Ao terminar a prece, os fantasmas do meu primeiro ano, não me assustavam mais. Subi as escadas do porão até o térreo do hospital, fazendo o caminho contrário da época das provas, e pela primeira vez me dei conta que me tornara médico, mas não menos aluno do que o meu primeiro dia de aula!